// Coletivos ainda enfrentam dificuldades para ir ao Cannes Lions

Giovana Oréfice
27 de junho de 2025 – 19h01

Em 2024, o Cannes Lions anunciou o Equidade, Representação e Acessibilidade (ERA), programa para aumentar a inclusão de grupos subrepresentados.Os passes para o festival variam entre € 1 mil e podem chegar a mais de € 10 mil, de acordo com a experiência selecionada.

Na edição deste ano, a organização destinou € 2 milhões em ingressos gratuitos para o evento, com foco no Sul Global.

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Publicitários Negros: presença do coletivo em Cannes foi registrada em série (Crédito: Divulgação)

Desde 2022, o festival tem aumentado políticas que abraçam questões como diversidade, inclusão, maternidade e assédio. André Chaves, fundador do coletivo Papel & Caneta, celebra a evolução e também chama a atenção para a diversidade na composição do júri aumentando de forma gradativa.

Dados de 2025 indicam que os membros eram parte de 52 mercados, com a maior representação inédita de membros da África, Ásia e Oriente Médio. O Cannes Lions também recebeu, pela primeira vez, jurados da Costa do Marfim e do Cazaquistão. Durante coletiva, Tom Beckman, CCO global da Weber Shandwick e presidente do júri de PR, ressaltou a quantidade de membros que tinham o inglês como segunda ou terceira língua, e classificou o avanço como um equalizador para o julgamento dos trabalhos.

Segundo Chaves, o Cannes Lions tem estado mais atento para mudar, ouvir, trocar, aprender e não errar – ou errar menos. Ainda que o ERA tenha, de fato, sido motor para viabilizar o acesso ao maior evento de criatividade do mundo, o problema não está apenas no valor do ingresso e, sim, nos custos que envolvem uma viagem, desde a passagem aérea até hospedagem e diárias.

“A partir do momento que o festival só se preocupa com o passe sem se preocupar com o acolhimento ou como conseguir possíveis descontos em acomodação e passagens, ela joga nas costas de coletivos, projetos e organizações uma responsabilidade e uma pressão sem tamanho, especialmente considerando a realidade de câmbio da moeda brasileira”, argumenta.

Uma liderança de um coletivo brasileiro que foi contemplado pelo ERA em 2024, lembra, chegou a precisar de auxílio psicológico pós-festival diante da pressão e cobrança ao longo das semanas que antecederam a premiação para organizar a ida para a Riviera Francesa.

Já neste ano, a OcupaTrans retornou o Cannes Lions pelo segundo ano consecutivo, selecionado pelo programa. O coletivo marcou presença com uma delegação de cinco pessoas. A experiência neste ano foi “única”, segundo a fundadora e presidente, Guilhermina de Paula e, por pouco, não foi concretizada.

Poucos dias antes do início do evento, o perfil da OcupaTrans no Instagram fez uma postagem informando que não iriam mais à Cannes: “Depois de meses de trabalho, e-mails enviados em busca de apoio e pessoas trans selecionadas para ocupar um espaço simbólico, precisamos dizer: não conseguimos. Faltou patrocínio. Faltou resposta. Faltou compromisso. Mas não queremos desistir. Fizemos nossos selecionados sonharem, prometemos mudar o mundo e oferecer uma nova perspectiva de vida para pessoas trans. Ainda estamos aqui”, dizia a legenda da postagem.

Na sequência, anunciaram a entrada de Galeria.ag, Droga 5, Le Pub, Publicis Brasil e a Wieden+Kennedy como patrocinadores. “Nosso trabalho foi duro até aqui. Desde o momento em que decidimos, junto com o squad, fazer o OCUPACANNES acontecer mesmo sem alcançar nossa meta, traçamos muitas rotas para chegar a este momento”, aponta uma das postagens realizadas após início do evento. O intuito era arrecadar R$ 250 mil, mas até o momento da reportagem, a “vaquinha” on-line arrecadou R$ 22.792.

Guilhermina conta que os desafios estiveram presentes desde a saída do Brasil até se manter ao longo da semana e, também, ao retornar. A transparência com o time, segundo ela, foi a chave para garantir a melhor experiência dos participantes e entender, enquanto comunidade, as possibilidades para tirar o sonho do papel.

Do mesmo modo, o coletivo Publicitários Negros (PN), também selecionado pelo ERA, enfrentou dificuldades para viabilizar a ida à Riviera Francesa. De acordo com Janaina Martins, presidente do conselho do Publitários Negros, as conversas com os apoiadores levaram semanas, e em alguns casos, até meses. “Foi um processo de muita articulação e construção conjunta”, diz.

Para atrair o apoio de agências e anunciantes, o coletivo ofereceu cotas com diferentes faixas de investimento, sempre com contrapartidas em visibilidade, conteúdo e presença em ativações. Entre os patrocinadores estiveram a Galeria.ag, Vox Haus, BETC Havas, W3 Haus, Converse e Havaianas, e ID_BR e Pride Content como apoiadores.

A terceira vez do PN no festival será eternizada em uma série de vídeos, produzidos diretamente da La Croisette. Além da experiência dos participantes, o projeto inclui entrevistas com brasileiros que também estiveram no evento, e visa ampliar o acesso de criativos negros premiados ao maior palco da publicidade global, promovendo encontros, repertório e representatividade.

O PerifaLions, projeto social que conecta jovens da periferia à indústria da comunicação, também marcou presença com o apoio de Africa, Artplan, Droga 5, FCB, Le Pub, LIVE, IPG MediaBrands e W3Haus.

Queda nos investimentos

Ao lado de Guilhermina, o fundador do Papel & Caneta participou da força tarefa de arrecadações para viabilizar a presença do coletivo em Cannes. Ele acredita que há uma queda real: marcas e agências que decidiram apoiar movimentos e projetos no ano passado, este ano, disseram não.

Chaves classifica como uma decisão que não diz respeito apenas à falta de investimento. “Vários podem ser os motivos para isso estar acontecendo. O mais comum tem sido descobrir que o apoio à diversidade era visto por muitos lugares apenas como uma pauta ou estratégia de RP, e não como um propósito, uma meta de negócio”, alega.

O contexto global também tem influenciado as decisões. Janaína endossa que a pauta da diversidade, infelizmente, perdeu força nos últimos tempos – desde movimentos mais conservadores no cenário global, como a eleição do Trump nos Estados Unidos, é possível notar impacto direto na agenda ESG, inclusive na comunicação, pontua.

Recentemente, a Ogilvy foi uma das agências que dissolveu sua equipe global de diversidade, equidade e inclusão – e, consequentemente, a extinção da função de chefe global de DEI – como parte de uma reestruturação que cortou 5% do corpo funcional. Em 2024, movimentos de cortes, reorganização ou retirada de informações relacionadas à temática ocorreram no Publicis Groupe, WPP e Omnicom Group.

A presidente da OcupaTrans defende que esforços voltados para diversidade são investimentos, e não gastos. “Quando uma empresa determina uma verba por ano e vai injetando em projetos de diversidade, estimula seus colaboradores a se sentirem mais incluídos dentro dessas iniciativas e da própria empresa. Faz com que a própria pessoa se sinta pertencente, acolhida e entenda que, ali, ela tem um significado para além do trabalho e da entrega”, defende, salientando a necessidade de ressignificar e construir uma nova indústria neste sentido, sobretudo voltado para a comunidade LGBTQIAP+ durante o ano inteiro.

Movimentações por parte de pessoas físicas já acontecem, por isso, recomenda que as companhias entendam o impacto social de coletivos e práticas, com um retorno da transformação de vidas e da sociedade de forma geral, bem como maiores pontos de conexão com o consumidor final.

“A gente sabe que o financiamento ainda é uma barreira enorme para muitos coletivos, principalmente os formados por pessoas trans, negras, indígenas, periféricas. Por isso mesmo, seguimos buscando abrir caminhos e ocupar esses espaços, porque eles também nos pertencem”, reforçou Janaína. Neste sentido, Guilhermina acrescenta: “De dez anos pra cá fizemos grandes movimentos pra ter pequenas evoluções. Essas pequenas evoluções de direitos estão sendo colocadas em prova e corremos o risco de perder essas conquistas. Não podemos dar nenhum passo para trás.”

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